quarta-feira, 22 de abril de 2009

O Parafuso 5

O Sr. Fragulho, ou simplesmente Gulho, como o tratavam carinhosamente os amigos, vá lá saber-se porquê, era um personagem fascinante.

Nascido na aldeia de Possacos, entre Valpaços e Vinhais, era o nono filho macho do casal Fragulho, o rapaz tinha sido a última e desesperada tentativa do casal conseguir uma menina. Quando nasceu já a mãe andava na casa dos quarenta e o pai na dos cinquenta.

Dos seus oito irmãos já tinham morrido quatro. Um dois dias depois do parto, dois com menos de três anos e o quarto afogou-se por volta dos dez anos no rio que passava próximo da aldeia quando se encontrava a fazer uma exibição de mergulho para os amigos.

Dos quatro sobreviventes, todos muito mais velhos que o Gulho, não havia rasto. Devidos às péssimas condições de vida todos tinham abandonado a aldeia. Dois emigraram para França, um para a Alemanha, onde trabalhavam nas obras e o terceiro foi para Lisboa onde praticava a profissão de travesti. Dos dois que foram para França não havia rasto, do que foi para a Alemanha ficou rasto em Possacos, mas também nunca mais voltou à aldeia materna, quanto ao de Lisboa nunca mais se soube nada dele, só muito mais tarde é que deu sinais de vida ao aparecer, anos mais tarde, um pouco envergonhado, na barbearia do irmão em São Pedro da Cova.

De facto o irmão que fugiu para a Alemanha, o Tonho, ficou rasto em Possacos. O Tonho, quando tinha 17 anos, engravidou a Deolinda, uma moçoila generosa da aldeia. Com medo das consequências, mas também para se livrar da tropa e da Guerra Colonial, fugiu a salto para a Alemanha. Quanto à Deolinda foi trabalhar para uma barra em Espanha e o rebento, uma menina de nome Noémia, sensivelmente da idade do Gulho, ficou a cargo dos avós, que finalmente tinham a menina que tanto tentaram alcançar, mas que por falta de pontaria nunca tinham conseguido.

O Casal Fragulho era rendeiro das terras do Dr. Antunes, proprietário absentista e advogado no Porto. O Dr Antunes só vinha à aldeia na altura de reclamar o seu quinhão das colheitas. O casal Fragulho, apesar de viver em péssimas condições e de ser indecentemente explorado pelo Dr. Antunes, vivia resignado e, tementes a Deus, nunca contestaram as arbitrariedades do advogado. Apesar das dificuldades lá conseguiram dar a quarta classe aos filhos e, orgulhosos da neta, fizeram das tripas coração e lá conseguiram, acabada a quarta classe, enviar a Noémia para o Liceu de Vila Real e mais tarde para o Porto onde tirou o curso de Enfermagem.

Por volta de 1958 o casal Fragulho envolveu-se na política. Vivia-se um período de exaltação no País com a candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Em Possacos, tal como em todas as aldeias, vilas e até cidades desse País profundo surgiram os espantalhos do medo. A Igreja, comprometida com o regime, apelava ao boicote da candidatura do General Sem Medo. As histórias contadas eram básicas, mas surtiram efeito num País analfabeto e mergulhado no obscurantismo. Diziam os padres na igreja que o General era comunista, que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno almoço e vinham aí para roubar as terras aos seus legítimos proprietários para as dar aos seus amigos. O Sr. Fragulho pai, que não tinha terras e trabalhava, por favor, quase como escravo ou servo da gleba da Idade Média, nas terras do Dr. Antunes, teve medo. Teve medo de perder a terra que não era sua e, sobretudo, que os comunistas lhe comessem, literalmente, a luz dos seus olhos, a Noeminha. Vai daí, convocado pelo presidente da Casa do Povo e instigado pelo padre, no dia das eleições prestou um serviço à Pátria falsificando centenas de boletins de voto para que o Almirante Américo Thomaz, candidato apoiado pelo Dr. Salazar, ganhasse as eleições. Foi através da manipulação e falsificação do voto que o homem que parecia um vendedor de gelados de praia ganhou as eleições e se manteve no poleiro até ao 25 de Abril de 1974.

O Gulho, rapaz esperto, acabou com distinção a quarta classe, mas como as posses eram poucas e os pais só tinham olhos para a neta, foi trabalhar como aprendiz de barbeiro com o Sr. Zeca, único barbeiro de Possacos. Mais tarde esta aprendizagem veio a ser-lhe muito útil.

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